Brecha para sumário narrativo e Walter Noé
Quando o barco sai da correnteza do rio para uma represa calma, nos dá oportunidade de organizar as ideias antes de chegar nova aventura. A próxima passagem que narro é importante para entender como se deram os demais encontros aqui contados.
O seo Walt é aquele senhor de barba comprida branca que todos veem passar pelas praças. É também daquelas pessoas que sempre adivinham quando o tempo vai mudar. O mais incrível é que ele nunca erra. Entende muito bem sobre o andamento das nuvens, e por isso mesmo distribui flocos de nuvens empalitadas que ele mesmo coleta. Esse é seu sustento. Mas em troca os nossos sonhos ficam também cada vez mais sustentados, porque é nas nuvens que eles estão suspensos e precisam sempre nos realimentar. Um dia, indignado que estava com as pessoas, chegou à praça central aos berros:
- Alguém deseja sustentar seus sonhos? Hoje é de graça, pois estão precisando! Adocem essas vidas amarguradas! Vamos! Alimentem seus sonhos! Ou onde vamos parar?
Ele estava bravo, mas até bravo era gentil, distribuindo algodão doce a quem quisesse. Quando me avistou sugeriu que eu limpasse os dedos de graxa e me entregou um floco bem grande, dos últimos, dizendo com voz firme:
- Temos que tomar cuidado porque as tempestades que passam por nossas vidas têm o poder de destruir os sonhos. – Pegou do seu cantil e despejou um pouco de água sobre outro floco em sua mão – Cabrum! Chuáaa! – fazendo-o derreter completamente. – Por isso você precisa sempre alimentar seus sonhos de menino. A guerra já esfriou. Agora os tempos serão outros. Segue tua caminhada e busque fazer com que cada dia seja proveitoso. – E me deu o cantil para eu levar comigo.
Ainda bem que defino meu horário de descanso. Assim pude deitar na grama da praça e pensar nas coisas que o seo Walt disse. Ele mesmo é como nuvem. Um homem livre que passa todos os dias, mas ninguém sabe de onde vem nem para onde vai. Muitos o consideram maluco. Ele é o único que não se sabe qual caminho vai tomar. Logo ele chega com seu colete a estampa de flores e seus flocos de nuvem pendurados em um charmoso carrinho ornamentado com brinquedos, flores e diferentes tipos de linhas. Nos diz algo que faz pensar e passa. Nesse tempo que pensei nele, sumiu.
Não havia coisa melhor a se fazer do que aproveitar aquele momento doce.
– Reizinho, acho que este será pra sempre o gosto de minha infância. E o seu? Será que aquele senhor que ali vai já parou para lembrar que gosto tem a infância dele? E o leitor deste diário, saberá dizer? Parece que este sabor passa tão rápido! Quando percebemos, já somos gente grande. Afinal, nem sei o que é ser gente grande... É ter que pagar as dívidas? É só isso?
Já o segredo que descobri é que Walt e Sabatina eram muito amigos e às vezes se encontravam para cochichar ou tomar um chá. Para um desses chás eles me convidaram. Ele sabia bem como fazer proveito das minhas novas botinas e me ensinou a usá-las melhor. Com este aprendizado eu pude fazer amigos em outros lugares, até um pouco mais longe. Depois de muito ouvir as instruções de Walt, experimentei pela primeira vez o comando “Pra frente e avante!” inventado por mim mesmo. As penas se agitaram rápidas, tive uma forte tontura e a sensação de desprendimento do corpo de que ele me preveniu. Um vento na minha barriga me fez muito leve. Saí de mim, voei, subi, não sei. Tanto em seguida senti um baque e despertei com um estrondo. Caí no chão como fruta que despenca da árvore.
Logo me vi perdido. Não sabia onde estava e me assustei com dois olhos grandes que vinham em minha direção. Pulei para o lado a tempo de ver passar aquele automóvel diferente de tudo que já havia visto. Ainda com o coração aos saltos pelo susto, sentei-me à beira do que devia ser uma estrada. Não tinha a menor ideia do que fazer ali, não sabia onde estava. Assustei-me novamente, agora com uma raposa que ia à procura de alimento. Resolvi levantar e dar uma espiada no entorno. Estava muito escuro e somente o brilho da lua tornava possível que eu distinguisse algumas formas. Fui para o meio da rodovia, olhei para um lado, para o outro, tentando visualizar alguma luz. Senti vontade de chorar. Meu amigo boizinho não estava ali para me fazer companhia. Não sabia como voltar, então tentei pular, bater os pés no chão, dar os comandos “Pra frente e avante!”, “Avante!”, “Para casa!” e nada. Lembrei-me da sensação de sonolência, forcei um bocejo e fechei os olhos tentando me concentrar para dormir e acordar do sonho. Senti uma luz forte em minha cara. Abri os olhos com dificuldade para enxergar e vi algo que vinha em minha direção. Dois grandes olhos novamente. Já sabia que deveria ir para a beira da estrada. Corri. Ao chegar mais perto o bicho guinchou, e para a minha surpresa uma fumaça o encobriu e senti um forte cheiro de coisa queimada. O gigante parou!
- Que faz aqui uma hora dessas, menino? Foi abandonado?
Não conseguia emitir uma palavra. Meus olhos foram distinguindo as formas que começavam a ficar mais nítidas. O bicho era um caminhão enorme diferente de todo caminhão que eu já tinha visto. De lá de dentro saiu um homem de cabelos escuros, bigode e cabelos crespos, dentes maiores que a boca, e visivelmente preocupado comigo.
- Você fala? É mudo?
Não sei por que balancei a cabeça dizendo que sim.
- É mudo. – a expressão de desespero do homem se intensificou – Mora por aqui?
Balancei a cabeça: Não.
- Uai, e essa bota, por que essas penas? Você não é nenhum E.T., não?
Balancei a cabeça rápido: Não.
- O que vou fazer? Não sei o que fazer! Fugiu de casa?
Balancei a cabeça já me divertindo: Não.
- E então, o que faço com você? – gritou em desespero, puxando os próprios cabelos – Pra onde vai?
Rapidamente percebi a direção que ia o caminhão e apontei para o mesmo lado.
- Goiânia? É a cidade mais perto.
Afirmei efusivo com a cabeça: Sim!
- Então suba no caminhão. Eu levo você até lá! Não vá me por em problemas, hein moleque.
Só me lembro de ter caído no sono e dormido quase todo o caminho, acordando às vezes com o homem cantando baixo suas dores de amor. Chegando em Goiânia, ele perguntou onde é que eu iria ficar. Quando avistei um conjunto de casas que pareciam um bairro fiz sinal para descer. Ele parou o veículo, perguntou de novo se eu tinha pai e mãe e se eu estava perdido ou fugindo de casa. Sem responder, estendi a mão em agradecimento e pulei para fora do caminhão com a boina em mãos. Acenei um adeus e o homem seguiu seu caminho jogando poeira e fumaça e feição de dúvida.
Atravessei as nuvens através do tempo como o senhor Walter Noé me ensinou e assim conheci José.
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Esse conto faz parte da coletânea "Sobre brilhos e graxas".
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No próximo conto também vamos conhecer José, não perca.