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cupido e cupcake

É hora de sair de cena...
(pra não continuar ferindo)

A paixão é uma alucinação, quando ela bate, faz doer em quem é atingido pela flecha, mas também, muitas vezes, em quem vira objeto de fantasia. Uma grande encenadora francesa diz que, numa encenação, é preciso valorizar a entrada e saída de personagens. Na vida, igual, precisamos começar a perceber quando é hora da gente se retirar da vida de alguém. Então, essa é a hora de sair de cena.

 

Disse Sócrates algum dia: "Todo homem e toda mulher desde a infância, faz mais mal do que bem”. Saber disso deveria levar as pessoas a evitarem o mal e se ocuparem em apenas tomar boas ações. Mas... Muitas vezes queremos fazer uma coisa e fazemos outra.

 

Na sala de ensaio da peça “Sonho de uma noite de verão”:

 

   LAKSHIMI

   É um absurdo que Oberon ordene a Puck que faça Demétrio conquistar a amada por vias escusas...

 

   CLEMERSON

   Ele usa de astúcia pra conseguir arranjar os casais, porque eles sofrem. É esse sofrimento que justifica os seus      atos.

 

   LAKSHIMI

   Pera aí. Justifica não, explica.

 

Clemerson estava apaixonado por Lakshimi. Mal sabe ela que ele já pensou em usar do artifício de seu personagem e tentar conquistá-la por poções. Um dia ele foi atraído por um anúncio em um poste que dizia:

 

“Maria Rosalina traz a pessoa amada em um dia com a magia do amor.”

 

O jovem enamorado foi até ela, que prometeu fazer Clemerson alcançar o que queria, se aproveitando dos dons alucinatórios de Kamadeva, divindade hindu. Mas Clemerson, consciente da peça em que estava atuando tentou convencer a si mesmo de que aquilo era uma tremenda besteira, e por isso resolveu ir até Lakshimi e se declarar pra ela, convicto de que esse seria um jeito bem mais honesto de resolver as coisas. Após o ensaio de uma peça é quando acontecem essas coisas, as pessoas procuram um encontro pra se distraírem, não passarem a vida da noite sozinhas, consigo mesmas.

 

   LAKSHIMI

   Desculpa, Clémi. Somos parceiros de trabalho. Não acho legal... Entre nós dois, vamos nos concentrar em nossas  cenas.

 

Ela falava com ele com certa formalidade que ela não tinha com os amigos dela que também faziam parte do elenco, como se quisesse manter uma distância mesmo. Lakshimi é uma artista cantora que deseja o sucesso e tem todo o seu foco voltado pra isso. É sincera com seus propósitos e viu nessa peça de teatro uma oportunidade de ganhar visibilidade, por isso insistiu que tivesse uma cena para cantar.

 

   CLEMERSON

   Aceita pelo menos esse cupcake. É de pão de mel…

 

   LAKSHIMI

   Ah, obrigado!

 

Quando ela ia saindo, ele a chamou de volta.

 

   CLEMERSON

   Experimenta agora.

 

Ela o olhou com estranhamento por alguns segundos.

 

   LAKSHIMI

   Tá bom.

 

E riu, fazendo o colega rir também, aliviado. Muitas coisas são expressas entre pequenos risos na vida. Que ela comesse o doce longe dele era sua maior preocupação naquele momento, porque ele precisava ser o primeiro homem a ser visto pela amada.

 

   LAKSHIMI

   Nossa, muito bom, o que tem aqui?

 

   CLEMERSON

   Chocolate, mel de abelhas, cana de açúcar.

 

   LAKSHIMI

   Amei, obrigado. Vou embora comendo, tá?

 

Ela se virou e foi. Clemerson sussurrou:

 

   CLEMERSON

   E pólen de amor-perfeito. Cupcake do amor.

 

Os papéis dessa história caíram como uma luva para seus intérpretes. Lakshimi focada, Clemerson querendo aprontar. Foi durante esse pensamento, saindo do espaço de ensaio, que ele foi abordado por Juca, um menino muito fofo que o tratou como se ele fosse especial, e foi assim que ele se sentiu. Quando estava indo embora, Clemerson pensou consigo mesmo em voz alta:

 

   CLEMERSON

   Certeza que ele viu o fora que levei e ficou com dó.

 

No ensaio do dia seguinte trocaram sorrisos esses dois. Clemerson reparou no corpo alto e magro do colega que interpretava Lisandro, e alguns detalhes começaram a lhe chamar a atenção, como os cachos do cabelo, uma pinta na bochecha, a mão com unhas bem feitas. Uma hora em que se encararam, Clemerson piscou pra ele e ele retribuiu. Coisas foram ditas aí...

Já no camarim:

 

   JUCA

   Ensaiar junto é muito íntimo né? Olha como a gente se vê…

 

Ele olhava pro espelho. Clemerson parou ao seu lado e os encarou pelo reflexo, tentando entender aquela fala.

 

   CLEMERSON

   A gente tá um regaço.

 

   JUCA

   Descabelados… Suados…

 

   CLEMERSON

   Surrados mesmo. E fedidosssssss.

 

Enquanto ele esticava o “s” como um sibilo de cobra, se aproximou de Juca e cheirou sua axila, causando cócegas, ao que o outro fechou o braço no reflexo acertando o nariz de Clemerson, que gritou e se tacou no chão com os olhos marejados e aquela dor momentânea lancinante.

 

   JUCA

   Ai, desculpa! Desculpa!

 

Juca se abaixou e tocou no rosto de Clemerson que levantou e lhe deu um beijo, um estalo na sua boca, fazendo aflorar nos dois, várias sensações.

 

   CLEMERSON

   Desculpa.

 

   JUCA

   Quero mais.

 

Se beijaram.

 

Quando entrou a Thelma, uma mulher grande em forma, talento e boca, e viu os dois, ela anunciou pra todo mundo.

 

   THELMA

   Faz tempo que não vejo isso! Pegação no camarim! Pandemia tirou essas surpresas da gente. Quem diria…

 

Enquanto os rapazes levantavam do chão, cinquenta por cento constrangidos e cinquenta por cento divertidos, Thelma foi abordada por Lakshimi.

 

   LAKSHIMI

   Quem?

 

A atriz pegou sua bolsa, colocou no ombro e sob o olhar de todos, abriu a porta e partiu. Deixou o ensaio, sem mais nem menos.

   THELMA

   O que é isso, gente? Ela ficou com ciúme ou só pareceu...?

Juca foi atrás dela.

 

   LAKSHIMI

   Vocês não estão sendo profissionais, desse jeito não vamos chegar a lugar algum com essa peça.

 

Mais tarde naquele mesmo dia, Clemerson estava na sala de ensaio repassando suas cenas, e seu texto se confundia com seu pensamento:

 

   CLEMERSON

   Hoje eu consegui fazer um grande feito, o cupcake do amor deu certo. Minha amada, se casará comigo. Mas na      verdade, não. Essas coisas só existem nas peças de teatro mesmo.

 

   LAKSHIMI

   Você aqui?

 

Clemerson pulou de susto.

 

   LAKSHIMI

   Não estava conseguindo ensaiar em casa.

 

   CLEMERSON

   Tudo bem. Eu já vou embora.

 

   LAKSHIMI

   Fica aqui. Vamos fazer a cena de Titânia e Oberon. O que acha?

 

   CLEMERSON

   Eles são muito apaixonados apesar de briguentos...

 

   LAKSHIMI   

   Ela nunca conseguiria viver sem ele...

 

Ele, encorajado, chega perto dela.

 

   CLEMERSON

   Posso te dar um beijo, Titânia?

 

Ao que ela fica imóvel.

 

   LAKSHIMI

   Isso não faz parte do texto...

 

   CLEMERSON

   Do Oberon não. Mas está no meu subtexto.

 

   LAKSHIMI

   Beija logo.

 

Clemerson beija Lakshimi. Os dois se entregam um ao outro com muita euforia ali, como se fossem dois gatos no cio, miando, deleitando-se um no corpo do outro, cada qual tentando tomar para si o que nunca poderiam ter de verdade.

 

Juca foi o primeiro a chegar para o ensaio no dia seguinte, abriu as janelas da sala e encontrou dois corpos nus, cobertos por uma cortina de cenário. Juca despertou com a luz e viu nos olhos do colega de trabalho sua decepção e mágoa. Clemerson estava igualmente chateado, por ter magoado aquele que o olhava com tanta dor. Algo de muito bonito havia acontecido entre eles, mas agora Juca se sentiu um lixo e Clemerson estava confuso. só queria abraçar o amigo, colega, amante, sei lá como chamar.

 

   CLEMERSON

   Laks, acorda. Pessoal tá chegando.

 

Enquanto ela despertava, assustada, Clemerson foi atrás de Juca no camarim.

 

   JUCA

   O que vai ficar na minha memória agora não é mais lembrança de momento bom, agora eu to achando outra coisa  de você, e o que eu to achando é que você não presta, que você é egoísta, só pensa no seu próprio p**. Você            pensa com essa cabeça – e lhe deu uma apertada nas bolas que Juca teve vontade de gritar de dor, mas se              conteve – e acha que pode fazer o que quiser.

 

Clemerson toma a decisão de sair da peça, pega um papel em sua mochila e escreve uma carta.

 

   “Essa é pra você que sabe que preciso sair da sua vida pra não te machucar mais.

Vou sair por essa coxia, me limitar a meu espaço e respeitar o limite do seu espaço. O corpo é nosso território,            mas eu invadi o seu, de novo, sem nem ao menos te encostar. O melhor mesmo, então, é parar de te ver, de me        mostrar pra você, de conversar… A única maneira que tenho no momento pra parar de te machucar é sair de cena.

    As estrelas continuam brilhando na noite, a lua estará altiva no céu, brilhante, os pássaros voando em busca de      comida, boa temperatura e bons ventos.

    Tudo pra dizer que tem coisas que a gente faz, sem saber muito bem como sucedeu, mas elas acontecem, como    o fluxo de um rio, em que a água agitada esbarra sem muito controle nas pedras à margem. A gente faz, gosta, se      diverte, às vezes se arrepende. Enfim. A gente faz coisas...

    Já levei várias flechadas e ando confuso há algum tempo. Por que zomba assim de mim, Cupido? tira de mim        essa paixão exacerbada, Puck. Deixe-me acordar desses sonhos de noites de verão. Agora que começa o                  outono, que as folhas ao tocarem o chão me mostrem como é estar firme. Que os ventos mais frios abrandem o          meu coração e o meu desejo.

   Com carinho,

   Clemerson”

 

   CLEMERSON

   Puck, Cupido, Kamadeva. Me deixem um pouco em paz, porque eu quero estar são e a paixão é uma alucinação.

 

(Essa história continua, mas não aqui, talvez no palco de teatro, um dia...)

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